quarta-feira, 23 de maio de 2012

Henri Cartier-Bresson: o momento decisivo

buscado no Incinerrante

 

Há mais ou menos uma semana, o Carlos Henrique postou um vídeo em que Henri Cartier-Bresson comenta sua trajetória e sua obra fotográfica. É uma pequena pérola para quem quiser conhecer um pouco mais o que pensa um dos mais importantes fotógrafos do século XX. Além disso, as imagens que se pode ver no vídeo são uma bela amostra da obra de Cartier-Bresson.
Em tempos de menos escrita do que gostaria aqui no incinerrante e com as crescentes buscas por Henri Cartier-Bresson que têm trazido visitantes aqui, decidi legendar o vídeo e compartilhar a transcrição da tradução que fiz a partir do áudio em inglês. É o que você encontra aí embaixo. Depois, quem sabe, escrevo uma ou outra coisa sobre algumas questões que os comentários de Cartier-Bresson suscitam.

Alguns dias depois da publicação desse post, o vídeo foi retirado do Vimeo por motivos de copyright. Em todo caso, as legendas que fiz estão disponíveis no Universal Subtitles ou clicando aqui.
 

O momento decisivo

Comecei a fotografar quando era muito jovem, não me lembro em que idade. Eu comecei pintando e desenhando. E para mim, a fotografia era um meio de desenhar. E isso é tudo. Esboço imediato, feito com intuição. E você não pode corrigi-lo. Se você tem que corrigir, é na próxima imagem. Mas a vida é muito fluida, enquanto às vezes as imagens desaparecem e não há nada que você possa fazer, você não pode dizer para a pessoa para sorrir de novo, por favor, faça aquele gesto de novo. A vida é de uma vez e para sempre.
Eu não estou interessado em documentar. Documentar é extremamente tedioso e no jornalismo eu sou péssimo repórter e fotojornalista. [Robert] Capa me disse, quando fiz uma exposição no Museum of Modern Art em 1946: “Tenha muito cuidado… Você não deve ser etiquetado como fotógrafo surrealista…” Todo meu aprendizado foi no surrealismo. Eu ainda me sinto muito próximo dos surrealistas. Mas ele disse “se você for etiquetado como surrealista, você não irá adiante, não terá trabalho e será como uma planta de estufa. Só esqueça, faça o que gostar… Mas a etiqueta deve ser fotojornalista.” E Capa estava extremamente sólido. Então eu nunca mencionei o surrealismo, isso é meu assunto privado. O que quero, o que procuro, isso é problema meu. E eu não sou um repórter, é acidentalmente, é lateralmente.
Fotografia de Henri Cartier-Bresson
Se eu vou a um lugar tento tirar uma foto que concretiza uma situação, que num só olhar tem tudo e que tem fortes relações de formas, o que para mim é essencial. Para mim é um prazer visual. Há um ritmo no modo como a cabeça cai aqui, isso vai de volta, há uma rima entre diferentes elementos, há um quadrado aqui, um retângulo, outro retângulo… São todos esses problemas que me preocupam. A maior alegria para mim é a geometria, o que significa estrutura. Você pode sair procurando por formas, padrões e tudo isso, mas é um prazer sensível e um prazer intelectual ao mesmo tempo ter tudo no lugar certo. É um reconhecimento de uma ordem, que está na sua frente. Como nessa imagem, o retrato da avó e a garotinha, são todas essas relações de curvas, de design, de linhas…
A diferença entre uma boa imagem e uma imagem medíocre é uma questão de milímetros. Uma diferença muito pequena, mas essencial. E se eu tiro uma foto dali, é outro arranjo… E são movimentos muito pequenos que estou fazendo, não estou pulando para cima e para baixo. É uma relação entre seu nariz, seus olhos, a janela atrás e é meu prazer estabelecer essas relações. E às vezes não há imagem, certo? Não há imagem.
Fotojornalismo, fotojornalismo… vale notar que enquanto alguns jornalistas são maravilhosos escritores, outros estão apenas colocando fatos uns depois dos outros… E fatos não são interessantes. Fatos não são interessantes. É o ponto de vista sobre os fatos que importa e na fotografia é a evocação, se você evoca, em francês se diz “évoquer”.
Algumas fotografias são como uma história de Chekhov ou de Maupassant: é algo rápido e há todo um mundo ali. As fotografias com que me importo são fotografias que se pode olhar por mais de 2 minutos. E isso é extremamente longo. Uma fotografia para a qual você pode olhar mais e mais vezes, de novo… não muitas, não muitas…

Retratos

O mais difícil para mim é o retrato. É muito difícil, é um sinal de interrogação que você coloca em alguém, tentando dizer quem é, ao que equivale, qual é o significado daquele rosto. A diferença entre um retrato e um instantâneo é que no retrato a pessoa concorda em ser fotografada. Não é nada parecido com alguém que você vê, que você capta na rua…
Eu gosto de fotografar as pessoas em seu ambiente, o animal em seu habitat. É fascinante entrar assim na casa das pessoas, olhar para elas, mas você precisa ser como um gato, não perturbar, andando nas pontas dos pés, sempre nas pontas dos pés. Mas certamente é como um biólogo e seu microscópio. Quando você estuda alguma coisa, isso não reage do mesmo jeito que quando não é estudada. E você tem que tentar colocar sua câmera entre a pele de uma pessoa e sua camiseta… Não é uma coisa muito fácil.
As atitudes das pessoas são tão diferentes na frente de uma câmera: alguns sem graça, alguns envergonhados, alguns odeiam ser fotografados e outros ficam se exibindo… Você sente as pessoas muito rapidamente, você vê as pessoas nuas pelo visor, você as vê totalmente nuas e às vezes é muito embaraçoso.
Eu me lembro que tive que fotografar para a Vogue uma senhora muito velha de Boston, uma maravilhosa senhora. Ela sorriu para mim, mas um tipo de sorriso que você não pode sorrir de volta para ela. Ela queria verificar a imagem antes da publicação e eu disse “sinto muito, nunca fiz isso, é uma questão de confiança” e ela concordou. Ela disse: “Oh, minhas rugas.” E eu disse é o que você tem de interessante, as rugas, afinal de contas, depende de como caem, o que é verdade, é a vida, é uma marca da vida. Depende de como as pessoas têm vivido e tudo isso se escreve em seus rostos. Depois de uma certa idade, você tem o rosto que merece, eu acho.
Comumente, quando eu faço um retrato, sinto vontade de fazer algumas perguntas só para ver uma reação de uma pessoa falando tão pouco quanto possível, mas ainda assim você precisa estabelecer um contato de algum tipo. Enquanto que com Erza Pound, fiquei diante dele durante talvez uma hora e meia em absoluto silêncio. Nós nos olhávamos nos olhos e eu tirei talvez, no total, uma boa fotografia por todo o possível e duas que não eram interessantes. Aproximadamente 6 imagens em uma hora e meia e absolutamente nenhum constrangimento.
Às vezes as pessoas perguntam: “Quantas fotos você tira? Muitas por dia?” Bem, não há regra. Às vezes, como nessa foto na Grécia, eu vi o quadro como um todo e esperei alguém passar. Tirei duas fotos, uma era um padre ortodoxo, com uma cartola, e a garotinha. Ela estava exatamente numa relação com as outras formas, enquanto ele era algo desajeitado, era outra concepção e às vezes não existe uma segunda escolha, porque as pessoas desaparecem. É por isso que essa profissão desenvolve essa enorme ansiedade. Pois você está sempre esperando o que vai acontecer. O quê? O quê? O quê? O quê? É: O quê? Sim. Ãh? Hum? Assim… É o tempo todo. Você fotografa, então sim, sim, talvez, sim…
Mas você não deve ultrapassar o limite e fotografar demais. É como exagerar na comida ou na bebida. Você precisa comer e beber, mas demais é excessivo. Porque entre a hora que você aperta o botão e aciona o obturador mais uma vez talvez a imagem estivesse entre as duas ações, é uma fração de segundo, é um instinto…
Em fotografia você precisa ser rápido, rápido, rápido. Como um animal e uma presa, assim… você captura, tira a foto e as pessoas não percebem o que você fotografou. É uma questão de quando e tudo no seu corpo se… É lindo! Para mim a fotografia é um prazer físico, não é preciso muito raciocínio… Não é preciso nenhum raciocínio, é preciso sensibilidade, um dedo e duas pernas. É lindo quando você sente que seu corpo está trabalhando, como se estivesse cheio de ar e em contato com a natureza e assim por diante… É lindo!
Percebe?
Eu sou extremamente impulsivo, terrivelmente… É realmente um pé no saco para meus amigos e família. Eu sou um monte de nervos, mas eu tiro vantagem disso na fotografia. Eu nunca penso, eu ajo rapidamente… Você tem que se esquecer de si mesmo, você tem que ser você mesmo e se esquecer de si mesmo, de modo que a imagem surja muito mais forte, o que você quer e o que você vê, se você se envolve completamente no que está fazendo, e não pensando. Ideias são muito perigosas. Você deve pensar o tempo todo, mas quando você está fotografando você não está tentando promover um argumento, explicar ou provar alguma coisa. Você não prova nada. Isso vem por si mesmo.
A primeira impressão é essencial, o primeiro vislumbre, o choque, a surpresa… Ela pula em você! Você a nutre com sua própria vida, seu gosto, a bagagem intelectual que carrega. Suas experiências, seu amor, seu ódio, é completo e rico…
E a poesia é a essência de tudo. Há dois elementos que estão de repente em conflito e há uma faísca entre dois elementos. Mas isso se dá muito raramente, você não pode procurá-la. É como se você estivesse procurando inspiração. A coisa toda vem e é enriquecendo a si mesmo e vivendo…
Digamos que eu espere por grandes imagens. Bem, é raro conseguir grandes imagens. Você precisa ordenhar um bocado a vaca e obter muito leite para fazer um pouco de queijo.
Eu não sei o que significa ser dramaticamente novo. Não existem novas ideias no mundo. Há apenas um novo arranjo das coisas. Tudo é novo, cada minuto é novo. O que significa reexaminar. A vida muda a cada minuto, o mundo está sendo criado a cada minuto e o mundo está caindo aos pedaços a cada minuto. A morte está presente em toda parte. Assim que nascemos. E é uma coisa muito bonita, como dizer?, le tragique de la vie, o que é trágico na vida. Pois há sempre dois polos e um não pode existir sem o outro. É por essas tensões que eu sou sempre movido.
Dessa imagem eu gosto de uma forma… Eu estava dirigindo na Grécia, nas montanhas ao norte, havia uma criança na estrada, cuidando de cabras. Eu não sei, acenei ou algo assim e de repente ele começou a andar sobre suas mãos. Havia tanta exultação, tanta alegria, naquele país estéril, naquela estrada empoeirada.
Eu gosto muito dos ingleses e a Inglaterra é o país mais exótico para um francês. É uma enorme diferença ir à Inglaterra e ver os ingleses, mesmo agora. Como posso dizer educadamente? Quando estou na Inglaterra, eu sinto como se estivesse sentado numa poltrona muito confortável, olhando para o palco e todos esses atores… posso aplaudi-los mas eles têm várias regras, maravilha, mas eu não devo participar, pular no palco e representar com eles. Vê? É assim: você olha a peça, não se deve aplaudir muito alto, e eu aprecio tremendamente.
Eu penso que tudo é interessante. Se você está arranhado… Mas ao mesmo tempo você não pode só fotografar tudo o que vê, há alguns lugares em que o pulso bate mais e outros… Depois da guerra, não sei, mas tinha a sensação de que ir a países coloniais era importante. Que mudanças vão acontecer lá? É por isso que passei 3 anos no Extremo Oriente.
Eu estava na Índia logo na morte de Gandhi, depois da partição entre Índia e Paquistão… É estar presente quando há uma mudança de situação, quando há muita tensão. Eu estava morando na Índia por cerca de um ano, até mais, e o problema da demografia, imensidão de espaço, de pessoas, me preocupava muito.
Eu gosto de viver num lugar, não gosto de ir por um período curto. Rodin disse algo… “O que é feito com tempo, o tempo respeitará.” Ou algo parecido. Eu passei na China os últimos seis meses do regime Kuo-Ming-Tang. Eu assisti seu despedaçamento. E eu estava lá quando os comunistas chegaram. Eu fiquei lá por outros 6 meses. Os chineses sempre estiveram entre um regime caótico e um regime austero e puritano. Por séculos tem sido de um ao outro. Eu tive muita sorte de estar logo naquela mudança. Uma tradição e o que resta de uma tradição… E ao mesmo tempo uma atitude revolucionária e uma nova concepção do homem.
Interessar as pessoas em lugares distantes, chocá-las ou agradá-las, não é difícil. Mas o mais difícil é no seu próprio país. Você sabe demais… Quando é no seu próprio bairro, é tanta rotina, é bem difícil de sair… quando estou indo ao açougueiro… De lugares em que estou o tempo todo, eu conheço demais e não o suficiente… E ser lúcido a respeito é o mais difícil. Mas sua mente deve estar aberta. Aberta, consciente. Consciente, assim, como se tivesse um radar, um holofote… E é por isso que qualquer um fez 10 boas fotografias na vida.
O que é interessante é a consistência. Seguir adiante e adiante. É sempre reexaminar as coisas, tentar ser mais lúcido e livre e ir mais e mais fundo. Eu não sei. Porque a câmera é uma arma. Você não pode provar nada mas ao mesmo tempo ela é uma arma. Não é um meio de propaganda, a fotografia. De forma alguma. É um modo de gritar o modo como você se sente. Eu amo a vida, eu amo seres humanos, eu também odeio pessoas. Percebe? A câmera pode ser uma metralhadora. Pode ser um divã psicanalítico. Pode ser um beijo caloroso. Pode ser um caderno de anotações, a câmera… E até, para mim (é estritamente como me sinto), eu gosto de tirar uma foto, estar presente, é uma forma de dizer sim, sim, sim. É como as três últimas palavras do “Ulisses” de Joyce, que é uma das tremendas obras que já foram escritas, é “sim sim sim”. E a fotografia é desse jeito, é “sim sim sim”. Não há nenhum “talvez”. Todos os “talvez” devem ir pro lixo. Porque é o instante, é a presença, é o momento, está lá. E é o respeito disso e um gozo… É um gozo tremendo de dizer “sim!”. Mesmo se for algo que odeia, “sim!”. É uma afirmação. Sim!

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