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A mídia, as cotas e o
sempre bom e necessário exercício da dúvida
Há anos venho
prestando atenção nos absurdos que os formadores de opinião são
capazes de dizer contra as cotas. Aqui, alguns exemplos.
Tenho escrito alguns
artigos sobre racismo e, em todos, invariavelmente, apareceu quem
tentava fugir do assunto para falar sobre cotas. São assuntos
relacionados, eu sei, mas também complexos por si só. Cotas não
seriam necessárias se não houvesse racismo. Mas estão aí, os
dois, e talvez agora, depois da histórica decisão do Supremo
Tribunal Federal, nos dias 25/04/2012 e 26/04/2012,
reafirmando a constitucionalidade das cotas, possamos começar a
conversar de verdade sobre eles. Porque talvez a velha mídia pare de
fazer a campanha suja que vem fazendo e nos deixe, finalmente, tratar
desses assuntos e das vidas das pessoas por eles modificadas
(brancos, negros, cotistas, não-cotistas etc…) com a honestidade e
o respeito que todos merecem. É agora que começa o trabalho, e é
bom que a gente tente separar, principalmente, o que é fato do que
foi campanha, o que é verdade histórica do que foi mero exercício
de futurologia. Será um longo caminho que vamos ter que aprender a
trilhar juntos, independente de sermos contra ou a favor. Somos
sujeitos históricos: o que fizemos ontem, como povo e como
indivíduos, reflete na realidade que temos hoje, assim como o que
fazemos hoje vai determinar com o que teremos que conviver amanhã. A
História não nos deixa viver impunes.
Quando mudei de opinião
sobre as cotas, em 2006, aprendi a duvidar. Durante um bom tempo
ainda me vi balançada entre argumentos, mas todos eles perderam a
força quando vi esse video, de 2007. Nele, Seu Jorge conta que
sua filhinha mestiça, de 6 anos, era segregada pelas coleguinhas na
escola de balé. Isso não tem nada a ver com preconceito de classe,
é racismo puro. Racismo entre crianças de 6 anos. As coleguinhas a
segregaram porque ela era diferente, e a única diferença visível
estava na cor. “Essa menina/ tão pequenina/ quer ser
bailarina”, diz o poema de Cecília Meireles, Mas depois
esquece todas as danças/ e também quer dormir como as outras
crianças. Alguém tem alguma ilusão de que a filha de Seu Jorge,
depois de uma brutalidade dessa, conseguirá dormir como as outras
crianças de sua escola de balé? Se a gente continuar querendo
acreditar que não é problema nosso, que todos nós que vivemos nos
tempos de hoje não temos nada a ver com os resquícios perenes e
dolorosos da escravidão, isso vai continuar acontecendo. Crianças
de seis anos continuarão sendo vítimas de racismo. Brancas,
mestiças ou negras. Porque o racismo que marca sem dó a criança
estigmatizada, tem na outra ponta aquela que vai crescer presa a esse
sentimento nefasto, mesmo que no futuro aprenda que ele é reprimível
e condenável. Esse livro de Eliane Cavalleiro nos mostra
que racismo introjetado na infância não desaparece sozinho. Para
combatê-lo, e todos nós estamos sujeitos a ele, é necessário um
exercício contínuo e nem sempre agradável de observação e
conhecimento de nossas palavras e reações e, sobretudo, do ambiente
à nossa volta. Alguém tem alguma dúvida de que, se os pais dessas
crianças que se recusaram a dar a mão para a filhinha de Seu Jorge
tivessem amigos, vizinhos e colegas de trabalho negros, com quem
convivessem em situação de igualdade, essa situação poderia ser
diferente? Provavelmente ninguém as instruiu a não dar a mão. Elas
observaram e concluíram: aqui há uma diferença, e ela envolve cor.
Para ajudar a combater o racismo e o preconceito de cor, as ações
devem ser pontuais e específicas, como as cotas raciais. Que não
são, de maneira alguma, incompatíveis com as cotas sociais,
específicas para ajudar a combater a desigualdade econômica.
Preconceito de classe e preconceito de cor, embora muitas vezes se
sobreponham, não são a mesma coisa, e exigem soluções diferentes.
São assuntos sérios que exigem, sobretudo, que sejam deixados à
margem de disputas políticas e de poder. Há racismo e luta
anti-racismo na direita e na esquerda. Não é bandeira de ninguém,
embora ainda sejam tão poucos os dispostos a carregá-la. Há
racismo e luta antirracista na direita e na esquerda (recomendo a
leitura do livro O
Marxismo e a questão racial – Karl Marx e Friedrich Engels frente
ao racismo e à escravidão). Não é bandeira de ninguém e é de
todo mundo, e tenho esperança de que um dia seremos muitos a
carregá-la.
Fonte: Revista
Forum
http://www.travessa.com.br/O_MARXISMO_E_A_QUESTAO_RACIAL_
KARL_MARX_E_FRIEDRICH_ENGELS
_FRENTE_AO_RACISMO_E_A_ESCRAVIDAO/artigo/6774f202-509d-4265-ac41-08c1bc448d7d
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