buscado no Cafe Margoso
xxxxxProfessores primários: Praia, Santiago, Cabo Verde, anos 40.
Maravilhoso texto do escritor José Luís Peixoto, para ler com atenção:
"O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da
imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não
recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a
neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos
reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para
percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os
professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu.
Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e
da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.
O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado.
Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A
falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é
culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o
material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a
distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os
professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos
que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material.
Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores
se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.
Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão
para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes
muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de
definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de
geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus
blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de
trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é
igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados,
que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as
páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os
professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores
recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.
Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios,
contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são
os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança
de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber
que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos
necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da
sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo.
Mesmo que ainda respire, já morreu.
Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se
aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são
maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso.
Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num
dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça
de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que
significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas
práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários
escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que
existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram
apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos
facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de
filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma
maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao
fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.
Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.
Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que
aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem
capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro
será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a
ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos
avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que
aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os
professores. Tenho esperança.
José Luís Peixoto"
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