A arte como bem comum e não privilégio do
artista, o artista como integrante da lógica coletiva do conhecimento e
não uma celebridade, estes princípios arcaicos orientam as ações de
vanguarda do coletivo italiano Wu Ming.
Só não confunda vanguarda com vanguarda.
Nada de experimentalismos de linguagem ou radicais ideais estéticos –
não é esta a natureza do pioneirismo do Wu Ming [expressão chinesa que
significa 'sem nome']. Não a velha luta para ‘expandir os limites da
linguagem’, o ramerrão do século 20 inteiro, mas a luta pelo uso
coletivo do saber – desde sua produção até o seu uso. Há 12 anos os
integrantes do coletivo [conhecido, até 1999 e com outra formação, como Luther Blissett Project] militam sob a sigla do copyleft, e há 14, pela desglamourização do artista.
As práticas do Wu Ming [expressão chinesa
que também significa 'cinco nomes', a depender da entonação com que se
fala] contra a lógica da cultura oficial – monetarista, individualista,
apoiada no mito da celebridade e do gênio criador, este personagem não
exatamente falso, mas que serve de fundo ideológico pro ideal de
originalidade que sustenta a indústria do copyright – ocorrem em várias
frentes. Não apenas os livros do grupo podem ser oficial e gratuitamente
baixados e livremente copiados [alguns em português, e mais alguns, mas nem todos],
como os 05 integrantes do coletivo trabalham de fato coletivamente,
assinando como grupo a autoria de vários de seus livros. Entre eles está
o romance Q – O caçador de hereges,
que desafia o argumento de que a pirataria mata o artista de fome,
disponível pra download há vários anos e em várias línguas e ainda assim
um best seller.
Mesmo os trabalhos individuais trazem a
marca do grupo. O belo romance (“objeto narrativo
não-identificado”, como prefere o autor) New Thing, recém-lançado
no Brasil pela editora Conrad, é assinado por Wu Ming 1, mas a voz
continua coletiva: o livro imita a edição de documentário, e toda a
narrativa se desenrola através dos depoimentos dos personagens, apenas
editados por um invisível diretor. Além disso, esta que seria uma
espécie de narrativa policial (misteriosos assassinatos envolvendo
músicos de jazz ocorrem na New York dos anos 60) traz toda a discussão
em torno da cultura livre, desde o método da colagem até a tecnologia
P2P.
A identidade do autor não é um segredo, e
nem a de seus pares. Wu Ming 1 nasceu Roberto Bui – Wu Ming 2 é
Giovanni Cattabriga, Wu Ming 3 é Luca de Meo, Wu Ming 4 é Federico
Guglielmi e Wu Ming 5, Riccardo Pedrini. O coletivo contra-explica:
“quem, ainda hoje, continua dizendo frases do tipo: ‘os 5 escritores que
se escondem por trás do pseudônimo coletivo ‘Wu Ming” ou ‘que sentido
faz não assinarem seus verdadeiros nomes, se na realidade todos sabem
como eles se chamam?’ está convidado a efetuar as seguintes
substituições: ’97′ no lugar de ’5′; ‘músicos’ no lugar de ‘escritores’;
‘London Symphony Orchestra’ no lugar de ‘Wu Ming’”. Tá bom assim?
No site do Wu Ming [na China, uma
assinatura bastante comum entre os dissidentes que lutam por democracia
e liberdade de expressão], como era de se esperar, há (além dos livros)
diversos textos disponíveis pra download. A grata surpresa está aqui,
vários desses textos disponíveis em português. Além das várias
colaborações e entrevistas concedidas à imprensa brasileira [alguns
integrantes do coletivo já estiveram por aqui, envolvidos em atividades
que vão desde lançamentos de livros até palestras sobre cultura livre],
vale a pena conferir o histórico de curiosas atividades do grupo e os diversos textos sobre copyleft, de onde foram extraídas as citações-links desta matéria.
A literatura do Wu Ming é vigorosa e renovada, e sempre aponta para novas possibilidades narrativas – estou lhe dizendo, New Thing
é uma das coisas mais bonitas que já li. Há uma boa dose de
gratificação em ver um grupo de artistas tão excelente dedicar-se a
outras coisas além de sua própria arte e como-viver-dela. Coisas,
arrisque-se dizer contra os ideólogos do
‘a-vida-passa-só-a-obra-permanece’, maiores. Condições mais democráticas
e não-exclusivistas de fazer e curtir cultura, por exemplo. Um contexto
outro, em que os grandes livros fiquem ainda melhores.
[Reuben da Cunha Rocha.]
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