quinta-feira, 24 de maio de 2012

O escritor coletivo

buscado no baixacultura


"Não somos animais fotográficos"
Wu Ming: "Não somos animais fotográficos"

A arte como bem comum e não privilégio do artista, o artista como integrante da lógica coletiva do conhecimento e não uma celebridade, estes princípios arcaicos orientam as ações de vanguarda do coletivo italiano Wu Ming.
Só não confunda vanguarda com vanguarda. Nada de experimentalismos de linguagem ou radicais ideais estéticos – não é esta a natureza do pioneirismo do Wu Ming [expressão chinesa que significa 'sem nome']. Não a velha luta para ‘expandir os limites da linguagem’, o ramerrão do século 20 inteiro, mas a luta pelo uso coletivo do saber – desde sua produção até o seu uso. Há 12 anos os integrantes do coletivo [conhecido, até 1999 e com outra formação, como Luther Blissett Project] militam sob a sigla do copyleft, e há 14, pela desglamourização do artista.
As práticas do Wu Ming [expressão chinesa que também significa 'cinco nomes', a depender da entonação com que se fala] contra a lógica da cultura oficial – monetarista, individualista, apoiada no mito da celebridade e do gênio criador, este personagem não exatamente falso, mas que serve de fundo ideológico pro ideal de originalidade que sustenta a indústria do copyright – ocorrem em várias frentes. Não apenas os livros do grupo podem ser oficial e gratuitamente baixados e livremente copiados [alguns em português, e mais alguns, mas nem todos], como os 05 integrantes do coletivo trabalham de fato coletivamente, assinando como grupo a autoria de vários de seus livros. Entre eles está o romance Q – O caçador de hereges, que desafia o argumento de que a pirataria mata o artista de fome, disponível pra download há vários anos e em várias línguas e ainda assim um best seller.
Mesmo os trabalhos individuais trazem a marca do grupo. O belo romance (“objeto narrativo não-identificado”, como prefere o autor) New Thing, recém-lançado no Brasil pela editora Conrad, é assinado por Wu Ming 1, mas a voz continua coletiva: o livro imita a edição de documentário, e toda a narrativa se desenrola através dos depoimentos dos personagens, apenas editados por um invisível diretor. Além disso, esta que seria uma espécie de narrativa policial (misteriosos assassinatos envolvendo músicos de jazz ocorrem na New York dos anos 60) traz toda a discussão em torno da cultura livre, desde o método da colagem até a tecnologia P2P.

A recém-lançada edição brasileira
A recém-lançada edição brasileira

A identidade do autor não é um segredo, e nem a de seus pares. Wu Ming 1 nasceu Roberto Bui – Wu Ming 2 é Giovanni Cattabriga, Wu Ming 3 é Luca de Meo, Wu Ming 4 é Federico Guglielmi e Wu Ming 5, Riccardo Pedrini. O coletivo contra-explica: “quem, ainda hoje, continua dizendo frases do tipo: ‘os 5 escritores que se escondem por trás do pseudônimo coletivo ‘Wu Ming” ou ‘que sentido faz não assinarem seus verdadeiros nomes, se na realidade todos sabem como eles se chamam?’ está convidado a efetuar as seguintes substituições: ’97′ no lugar de ’5′; ‘músicos’ no lugar de ‘escritores’; ‘London Symphony Orchestra’ no lugar de ‘Wu Ming’”. Tá bom assim?
No site do Wu Ming [na China, uma assinatura bastante comum entre os dissidentes que lutam por democracia e liberdade de expressão], como era de se esperar, há (além dos livros) diversos textos disponíveis pra download. A grata surpresa está aqui, vários desses textos disponíveis em português. Além das várias colaborações e entrevistas concedidas à imprensa brasileira [alguns integrantes do coletivo já estiveram por aqui, envolvidos em atividades que vão desde lançamentos de livros até palestras sobre cultura livre], vale a pena conferir o histórico de curiosas atividades do grupo e os diversos textos sobre copyleft, de onde foram extraídas as citações-links desta matéria.
A literatura do Wu Ming é vigorosa e renovada, e sempre aponta para novas possibilidades narrativas – estou lhe dizendo, New Thing é uma das coisas mais bonitas que já li. Há uma boa dose de gratificação em ver um grupo de artistas tão excelente dedicar-se a outras coisas além de sua própria arte e como-viver-dela. Coisas, arrisque-se dizer contra os ideólogos do ‘a-vida-passa-só-a-obra-permanece’, maiores. Condições mais democráticas e não-exclusivistas de fazer e curtir cultura, por exemplo. Um contexto outro, em que os grandes livros fiquem ainda melhores.
“A propriedade intelectual (copyrights, marcas registradas, patentes etc) se tornou um monstro em todos os campos do conhecimento. Algumas corporações detêm até o DNA de certos seres humanos. Plantas que sempre existiram e sempre serviram de alimento para a humanidade estão sendo patenteadas por bastardos gananciosos e se tornando propriedade privada, e então eles podem revendê-la exatamente para as mesmas pessoas que costumavam plantá-las, cultivá-las e comê-las. Falando estritamente de arte e literatura, os termos de prazos do copyright estão sendo ampliados de uma maneira sem precedentes. Há cem anos, o copyright durava 12 anos, agora ele dura 70 anos após a morte do autor, e alguns filhos da puta estão fazendo lobby nos parlamentos para estendê-lo por mais vinte anos! O copyright se tornou uma coisa parasitária. Você se lembra de “About a Boy”, do Nick Hornby? O personagem principal é um cara rico e mimado que não tem nenhum interesse real na vida, ele é cheio da grana e vive uma vida ociosa no West End de Londres. Por que? Porque o pai dele escreveu uma famosa música de Natal, ele herdou o copyright e ganha a vida com as execuções públicas, todos os natais. Parece divertido, mas existe toda uma classe de parasitas vivendo desse jeito, eles não têm mérito, não têm habilidades, não têm talento, não têm inteligência, mas eles são absurdamente ricos! É patético e nojento e nós queremos ser parte de uma ofensiva que irá chutar esses caras para fora de suas mansões e os forçar a arrumar um emprego de verdade, pelo amor de Deus!”
[Reuben da Cunha Rocha.]

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