buscado no Amálgama
Ele intuiu de forma genial o mundo da irrealidade carcerária em que passaríamos a habitar.
No alvorecer do capitalismo moderno, Adam Smith cunhou a expressão “a
mão invisível” para designar a força impessoal investida do poder de
organizar os agentes do mercado. Essa mão, que hoje meu ódio impotente
gostaria de decepar, explicaria o funcionamento das forças econômicas
que milagrosamente se coordenam – o jogo da oferta e da procura, por
exemplo. Como o gado errante tangido dos campos comunais para as
fábricas, hoje da solidão física para as redes sociais, nada entendo
disso. Sei apenas que me tornei prisioneiro de carcereiros invisíveis. A
vetusta mão invisível de Adam Smith funciona hoje como a fantasmagoria
de um processo kafkiano. Não cometi nenhum crime, o próprio poder
digital e anônimo de nada me acusa, mas no fim do filme eu morro como um
cão, como o anônimo esvaziado de humanidade da obra de Kafka.
O parágrafo acima traduz uma ironia atroz. Formei-me embalado pelo
humanismo originário das Luzes do século 18. Formei-me acreditando no
valor da liberdade humana, que decorreria das forças do progresso
social, do desenvolvimento da democracia e das forças produtivas, e
eis-me agora refletido no espelho de Kafka: o espelho que reflete um
inseto chamado ser humano. Miro esse inseto, que sou eu, e vejo apenas a
irrealidade do labirinto digital em que as forças invisíveis do mercado
me aprisionam. Um dos deuses dessa revolução da ciência morreu há pouco
e é hoje celebrado no mundo como um Deus, um Deus mais poderoso e
idolatrado que o deus (minúsculo) de qualquer religião. O nome desse
Deus – mortal quanto eu e você, tanto que morreu num frenesi típico do
mercado voraz – é Steve Jobs. O sobrenome é arrepiante, mas sigamos.
Steve Jobs morreu, mas continua na rede, celebrado em imagens que o
vendem e que ele vende. Ele posa como o gênio letal do mercado,
mercadoria fundida na mercadoria, pois está sempre vendendo alguma
coisa: vende a maçã paradisíaca, o Iphod, Ipad, o Iphone,o Tephod, e
outras siglas que me possuem e nos possuem. Mas o gado servil e ignaro,
cego de ambição e desejo voraz de consumo, o idolatra como se fosse o
bezerro de ouro da lenda bíblica.
O inseto se mira no espelho kafkiano e sabe que está completamente
sozinho nesse mundo de forças onipresentes e invisíveis. Não tem um
amigo. Não tem com quem compartilhar um sentido humano palpável de vida,
de amor, de humanidade efetivamente compartilhada. Mas liga o
computador, conecta-se na rede social e lá estão seus 900 amigos. Há
quem tenha milhares. Os famosos têm tantos que acionam um dispositivo
digital para limitar o número de amigos que invadem sua página para
tagarelar nossa futilidade, nossa insignificância digital. Lá estão os
sites de relacionamentos: milhões de solitários vorazes esfomeados
diante de fantasias devoradoras. Estamos todos sozinhos, dolorosamente
sozinhos como nunca o fomos na história da nossa atormentada condição
solitária, e no entanto saltamos como crianças insanas celebrando a
beleza das nossas vidas invejáveis.
A revolução digital, a mão invisível e impiedosa do mercado,
reduziu-me à condição de inseto. Mas eu pelo menos sei que fui esmagado
por essa operação diabólica. Nas situações mais cotidianas, posso a
qualquer momento ser reduzido a nada enquanto me debato, inseto cego e
impotente, dentro da prisão que é a minha casa. Uma simples troca de
operadora de telefonia suprime magicamente minha existência. Alguém, o
burocrata da revolução digital, acionou indevidamente um dispositivo que
não sei o que é, onde está, como funciona, e de repente suprimem o
número do meu telefone, meus vínculos precários com o mundo humano,
minha humanidade virtual, única que o admirável mundo novo da revolução
digital me concede. O que fazer para refazer meus elos com o mundo,
ouvir uma voz humana através do fio? O fio de Ariadne que me resta,
único que poderia libertar-me do labirinto digital, é a telefonista
eletrônica, esse ser irreal e arrepiante. Como arrepiante, se é irreal?
Ora, simplesmente porque tudo agora é irreal. Embora o mundo esteja
cheio de mulheres lindas, gostosas e infelizes, tantas delas
histericamente em busca de um homem que lhes dê prazer, o inseto, tão
infeliz e solitário quanto elas, ama uma boneca inflável, como aquela do
conto profético de Rubem Fonseca.
Mas o profeta supremo é Kafka. Ele intuiu de forma genial o mundo da
irrealidade carcerária em que passaríamos a habitar. Como os carcereiros
são agora invisíveis, a mão milagrosa do mercado foi convertida numa
cadeia infinita de carcereiros que nos controla do berçário à UTI (U Teu
Inferno, na minha tradução). O carcereiro é uma figura de mil faces, ou
uma figura sem face, mas está investido do poder de nos acorrentar do
útero ao túmulo. O nome genérico dessa figura sem face é a Dívida, a
Conta imperiosa que estamos condenados a pagar aos poderes anônimos que
nos dominam. Esse poder está em tudo e em tudo milagrosamente se
transfigura.
Não sei que crime cometi. Não cometi nenhum crime. Estou apenas
tentando sobreviver ao naufrágio que consome tudo que conferiu sentido à
minha existência, tudo que procurei realizar como ideal de humanidade
livre reconciliada com o outro que se tornou minha própria irrealidade.
Não cometi nenhum crime, repete desesperado o inseto espelhado na
invisível prisão kafkiana. Mas a voz inaudível da revolução digital, a
mão assassina da revolução que produz deuses como Steve Jobs
simplesmente afirma que não há crime nenhum, que nada fiz ou preciso
fazer. O que há, o que existe é o poder invisível da máquina indomável e
onipresente produzida pela diabólica inteligência humana. Ela agora nos
aprisiona e nos fiscaliza e pune do útero ao necrotério. E alguém tem
que pagar a Conta, pois todos têm Dívida a pagar. Esta é a realidade
tenebrosa da irrealidade digital que nos reduziu a insetos kafkianos:
precisamos pagar nossa Dívida imposta por uma Culpa abstrata que para
sempre me condena ao labirinto digital. Quero protestar, afirmar meu
único e último direito humano, mas o operador invisível vai me deletar,
vai me suprimir, vai me del… , vai me su…
2 comentários:
Fantásticoooooooo!!!
Excelente post!!!
Lamentavelmente triste e de uma realidade que chega a doer na alma.
Estamos verdadeiramente condenados ao labirinto digital? Ou será que a humanidade acordará dessa letargia que a está conduzindo para o NADA?
Me agarro a esperança de que os humanos acordarão a tempo de dizer BASTA.
Muito obrigado meu amigo.
Um grande abraço
Resta sim, a esperança.
Um grande abraço Burgos.
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