Buscado no Depredando
por Eduardo Carli de Moraes
Documentário de
Walter Carvalho (2012)
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O nome
escrito no RG perdura do nascimento à morte, quiçá modificado, vez
ou outra, por casório, mudança-de-sexo ou ida-pro-estrangeiro. Já
a criatura que este nome batiza decerto é bem mais fluida e líquida
do que sugere a fixidez dos documentos. Somos seres mutantes! As
barbas sucederam aos meus dentes-de-leite do mesmo modo como os
cabelos alvos da velhice hão de esbranquiçar estas madeixas
temporariamente cheias de cor. E não será melhor aquiescer à
roda-viva dos tempos ao invés de aspirar por impossíveis
imutabilidades?
“Não
se entra duas vezes no mesmo rio”, dizia Heráclito uns 2.500
anos atrás. A ancestralidade do dito, seu caráter de “clássico”
da filosofia, não significa que o rio de que ele falava – o rio
cósmico, o rio universal, o rio de Tudo o que escorre... - cessou de
correr. Prosseguem as marés em sua dança com a Lua. Prosseguem as
águas a responderem aos chamados invisíveis das gravitações
planetares, eternamente fluentes, e sempre aos humanos indiferentes,
por mais embasbacados que fiquem estes diante de mares e luares!
Se a
própria Natureza ao nosso redor é dinâmica eterna e imparável
mobilidade, seríamos loucos se quiséssemos, apegando-nos a dogmas e
nos engessando em ortodoxias, sermos fixos como as “pedras que
choram sozinhas no mesmo lugar”. Raul, como canta-nos em "Medo
da Chuva", "aprendeu o segredo da vida vendo essas pedras
que choram sozinhas no mesmo lugar". Conheço poucos versos mais
lindos na história da poesia e da música brasileira. Raul Seixas
nos comove e nos encanta tanto, me parece, pois não quis ter um
destino de pedra, estagnada em sua solidez, e preferiu ser rio. "Eu
preferiu ser uma metamorfose ambulante do que “ter aquela velha
opinião formada sobre tudo...”.
E isso,
pra mim, é rock'n'roll até o osso. Pedras que rolam não
criam limo. Mas melhor que ser pedra que rola é ser homem-rio. Não
é à toa que Walter Carvalho inicia seu filme com um dos
símbolos-mor da contracultura hippie sessentista: os dois
motoqueiros de Easy Rider, encarnados por Dennis Hopper e
Peter Honda. Raul Seixas, seguindo essa metáfora, teria sido um easy
rider tupiniquim, um que põe o pé-na-estrada ao invés de ser
samambaia, um maluco beleza sem medo de ver o misticismo misturado
com a lucidez, nem o rock com o baião, Jimi Hendrix com Luiz
Gonzaga, Satanás com Cristo, Crowley com Shiva... A ousadia das
mesclas, a leveza desse saltar eclético em várias “ilhas” da
cultura, faz de Raul um desbravador de novas sendas para a
liberdade!... “Faze o que tu queres... há de ser tudo da lei!”
Que esse
anarquismo estético todo seja altamente subversivo eu não
duvido. E é ótimo que seja. Raul Seixas permanece um remédio
necessário contra o caretismo. Longe de mim bancar aqui o bully
dos caretas, ainda mais considerando que tenho, com certeza,
minhas próprias caretices, como todos. O problema é que o caretismo
não é tão inofensivo como parece: estou convencido de que muitos
“homens de poder”, muitas altíssimas autoridades
políticas-militares-religiosas-policiais, muitos destes que são
responsáveis por criar as nossas leis e vigiar nossos comportamentos
e nossas interações sociais, são caretas dogmáticos.
Um exemplo: a sangrenta Guerra às Drogas, baseada em ortodoxias proibicionistas, por exemplo, já deixou 50.000 mil mortos no México nos últimos 5 ou 6 anos... A mesma guerra absurda, levada a cabo faz algumas décadas pelo DEA norte-americano, que segue seguindo à risca a cartilha do czar Anslinger, causou trilhões e trilhões de desperdício de verba pública e o encarceramento em massa de um imenso contingente populacional: 25% dos presos do planeta estão nos Estados Unidos da América, o maior Estado policial e militar do mundo. Quanto aos assassinados no Rio de Janeiro ou na Colômbia, bem... quem é que está contando? E como não perder a conta diante de um genocídio tamanho?
Um exemplo: a sangrenta Guerra às Drogas, baseada em ortodoxias proibicionistas, por exemplo, já deixou 50.000 mil mortos no México nos últimos 5 ou 6 anos... A mesma guerra absurda, levada a cabo faz algumas décadas pelo DEA norte-americano, que segue seguindo à risca a cartilha do czar Anslinger, causou trilhões e trilhões de desperdício de verba pública e o encarceramento em massa de um imenso contingente populacional: 25% dos presos do planeta estão nos Estados Unidos da América, o maior Estado policial e militar do mundo. Quanto aos assassinados no Rio de Janeiro ou na Colômbia, bem... quem é que está contando? E como não perder a conta diante de um genocídio tamanho?
Aliás,
não haveria um certo eufemismo no próprio termo “Guerra às
Drogas”? Como se as perseguidas fossem só as substâncias, e
não... as pessoas que as utilizam e comercializam! Esta
guerra contra pessoas, movida por preconceitos que se agarram com a
obstinação de sanguessugas às nossas legislações, tem a ver –
e me arrisco agora em psicologia social raul-seixista! - com o
caretismo institucionalizado dos fanáticos pela ordem. E Raul Seixas
é um providencial antídoto.
O que eu
quero dizer é que acho ótimo que tenha existido uma figura como
Raul para ser uma mosca na sopa de tudo quanto é discursinho pró
DOPS, Opus Dei, Caveirão do BOPE... Raul foi, de fato, uma das
maiores figuras da contracultura brasileira na segunda metade do
século passado, um artista de criatividade exuberante, e que nos
mostrou a beleza da ousadia, da quebra de paradigmas, do
comportamento distoante. Ouvir Raul é uma cura contra a normopatia,
termo que empresto do psicanalista José Ângelo Gaiarsa, talvez o
mais brilhante e mais célebre dos nossos reichianos.
“Normopata”
é aquele tipo de neurótico, comuníssimo aliás, que deseja, acima
de tudo, ser normal. Somos todos um pouco normopatas: em situações
sociais, especialmente, modelamos nosso comportamento de acordo com o
que nos foi ensinado sobre o que é normal e o que é patológico, o
que aceito e o que é ilícito. Ah, esses sininhos de Pavlov que não
cessam de bater, infernais e aporrinhantes, dentro de nossos
cérebros!
A
normopatia, neurose de massa, talvez ajude a explicar fenômenos tão
atuais, e tão justamente combatidos por tantos movimentos sociais,
como a homofobia, o racismo, o bullying. Pessoas que possuem
uma “imagem ideal” do que seja a normalidade – por exemplo,
normal é quem é branco, católico, heterossexual e “democrata”
– tendem a soltar seus anátemas (e às vezes seus cachorros e sua
polícia...) pra cima de quem destoa desse ideal do “Normal”. E
dá-lhe pauladas e preconceitos pra cima de comunistas, negros,
homossexuais, ateus, anarquistas, índios, “hippies” e tantos
outros “desviantes” (na perspectiva dos fanáticos pelo normal,
claro...).
No
Brasil, como prova a onipresença e onirecorrência do "Toca
Rauuul!" em qualquer show, boteco, pub, roda-de-samba ou
concerto de música clássica, Raul Seixas virou uma espécie de mito
nacional, neo-Macunaíma, objeto de um culto equivalente em terras de
Pindorama àquele prestado à Che Guevara em outras plagas (cubanas
ou argentinas, por exemplo). Raul é muito mais que música: é um
"modelo" de comportamento, um ideal de personalidade,
alguém que muita gente se põe a imitar e reverenciar como se se
tratasse de um novo Cristo - e bem peculiar, aliás, dadas as
propensões de Raul para o satanismo e seu amor muito maior pelo
Baghavad-Gita dos indianos do que pela Bíblia dos romanos...
O pivete
baiano que se encantou com Elvis Presley e Litte Richard, que puxou a
gola pra cima e começou a rosnar e uivar com "Tutti Frutti"
ou "Be-Bop-A-Lula", acabou sendo, junto com os Mutantes, um
dos principais agentes da mistura entre a música brasileira e o que
estava na crista da onda no panorama musical internacional. Raul não
tinha medo de "importar" - e sem pagar direitos autorais ou
ter que responder processos por plágio - o que havia de melhor no
rock gringo. Ele não copiava - ele expropriava. Quer dizer:
apropriava-se de modo muito próprio do que suas espertas antenas
incorporavam e acabava por realizar uma síntese absolutamente
original e inaudita de elementos antes considerados imisturáveis. Um
antropófago!
Com Raul,
acontece na cultura brasileira um dos mais poderosos fenômenos do
que eu chamaria de idolatria secular. O pop star, afinal
de contas, é uma espécie de ídolo a vagar fora das igrejas.
Cultuado, como outrora Dionísio e Baco, nos locais de dança e
carnaval, nos agrupamentos clandestinos de entusiastas, nos locais
onde emergem zonas autônomas temporárias e os sujeitos experimentam
as "delícias do deslimite" (Rüdiger Safranki). Como
quantificar o impacto de uma figura carismática dessas nos sonhos de
milhares de homens e mulheres? Como calcular quantas personalidades
são moldadas, ao menos em parte, tendo o raul-seixismo como
modelo e ideal? Quando John Lennon soltou aquela que deixou de
cabelos em pé os fundamentalistas religiosos ("Os Beatles são
mais populares do que Jesus Cristo"), estava só dando amostras
de seu apuradíssimo senso social. Pois de fato, em nossas sociedades
do espetáculo, pra usar a expressão consagrada por Guy Debord, os
pop-stars talvez tenham mais impacto social do que alguns
mofados símbolos religiosos de milênios atrás.
Raul
Seixas, arauto da contracultura brasileira, padroeiro de todas as
lutas anti-manicomiais e anti-dogmáticas, sátiro e palhaço de uma
sociedade gerida por elites doentes, é também aquele que nos
ensinou que para desafinar o coro dos contentes não é necessário
ser soturnamente triste. Com que contentamento e com que jovial
audácia Raul não encarnava a ovelha negra! Esta é uma mosca
risonha pousando nas intragáveis sopas dos dogmáticos, dos
fanáticos, dos caretas. Como a Mafalda de Quino, Raul é um
quixotesco protestador contra as sopas azedas deste mundo. E, nos
antípodas do inseto nauseante e repugnante no qual o Gregor Samsa de
Kafka se viu transformado, Raul Seixas é uma mosca feliz e
saltitante. Provoca e alfineta, introduz a dissonância no coro dos
normais, questiona as autoridades autoritárias, abre novas vias de
interpretação do mundo e da vida, escancarando portas e janelas com
pontapés de poeta... O estrago que causou, a influência que gerou e
os encantamentos que despertou prosseguem agindo e ecoando, anos e
anos depois que os primeiros vermes roeram as frias carnes de seu
cadáver alcóolatra e de pâncreas mutilado. E hoje em dia, fantasma
entre nós, que frequenta nossos pesadelos e sonhos, que anima nossas
festas e nossos cinemas, que é semente nos solos de nossa cultura e
inspiração para o desabrochar de nossa criatividade, Raul parece
uma figura que saiu da vida só para gozar, altaneiro, da notável
sobrevida dos mitos.
2 comentários:
Oi Jader.Como fã do Raul,não de forma tão profunda em termos politicos e sociais,mas de admiração pela forma velada dele em expor problemas sociais ao alcance bem popular de entendimento para pessoas como eu, por exemplo.Li também sobre a mosca na sopa.Gostei muito.Abração da Nelly.
Nelly, acredito que conhecer seu trabalho profundamente é um problema de todos nós, aos poucos, grupos anarquistas e admiradores do Raul estão expondo verdadeiras perolas da contracultura na vida de Raul.
Um grande abraço
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