buscado no História & Politìca
por Gustavo Moreira
Aconteceram no
Brasil, nas últimas décadas, contínuos avanços no sentido da regularização das
terras sob ocupação indígena. Sob a
influência de profissionais das Ciências Humanas e Naturais, que em vários
casos conviveram durante muitos anos com os descendentes das populações
pré-colombianas do país, uma parcela expressiva da sociedade deixou de ver o
índio como um ser estranho, o selvagem por excelência. Os múltiplos estilos de vida das comunidades
indígenas são hoje reconhecidos como válidos e respeitáveis, ao menos pelas
pessoas de orientação progressista. Não
cabem mais, no século XXI, as tradicionais políticas de inclusão forçada via
trabalho subalterno, expulsão ou extermínio.
Todavia,
toda aquisição de direitos por segmentos historicamente marginalizados tem como
contrapartida, no mínimo, um forte movimento midiático de “denúncia”. Quando obrigadas pela ação governamental,
pela pressão dos movimentos sociais, ou por ambas, a fazer concessões de
qualquer natureza, as oligarquias se colocam infalivelmente na posição de
vítimas. Para isto, dispõem da quase
totalidade dos meios de comunicação privados existentes no país.
Considerando
a vastidão do tema, me restringirei a uma única situação concreta: a disputa
por terras entre índios e fazendeiros do sul do estado da Bahia. Os porta-vozes destes últimos ostentam na
imprensa os títulos de propriedade de seus clientes, nunca colocando em debate,
é claro, as circunstâncias em que se produziram tais documentos. Mas não se
limitam a isto: uma das estratégias da mídia burguesa contra os índios é a
contestação da própria identidade indígena.
Neste campo, variam as linhas argumentativas: às vezes apela-se para os
critérios de aparência física; em outros momentos, alega-se que os índios
adotam costumes civilizados, sendo assim, na verdade, caboclos.
Examinemos
dois exemplos: a revista Veja, na edição
de 5 de maio de 2010, publicou uma extensa matéria tentando desqualificar por
completo o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas. veja.abril.com.br/050510/farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml
Em um dos boxes, sob a foto de um
motorista de ônibus com cocar, podemos ler o seguinte trecho:
O baiano José Aílson da Silva é negro e professa o
candomblé. Seu cocar é de penas de galinha, como os que se usam no Carnaval.
Silva se declarou pataxó, mas os pataxós disseram que era mentira. Reapareceu
tupinambá, povo antropófago extinto no século XVII. Ele é irmão do também
autodeclarado cacique Babau, que vive em uma área que nunca foi habitada pelos
tupinambás. Sua "tribo" é composta de uma maioria de negros e
mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros.
Não
temos como averiguar a vida pregressa de José Aílson. Caso seja
realmente mentiroso, está em péssima companhia. Em 1860, o presidente
da Bahia, conselheiro
Herculano Ferreira Penna, relacionou os vinte e nove aldeamentos
indígenas que
existiam na província. Informando que
viviam 5.579 pessoas nestas povoações, Ferreira Penna identificou
diversas
etnias, entre elas os tupinambás que Veja exterminou no século XVII:
Como
se não bastasse a falta de seriedade no trato com a História, o autor do texto,
grosseiramente, quis fazer valer o critério pelo qual só é índio quem guarda
perfeita semelhança fenotípica com seus antepassados retratados no início da
colonização. Desta maneira, todo e
qualquer cidadão autodeclarado índio poderia ser apontado como impostor, visto
não haver notícia de população, em qualquer parte do mundo, que mantenha carga
genética idêntica à que possuía há quinhentos anos. O recurso à imagem do selvagem canibal é simplesmente
grotesco.
A
Época de 27 de novembro de 2009
(revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI105789-15223,00-O+...)
não é mais sutil: em reportagem sobre o mesmo tema, fica óbvia a intenção da
articulista Mariana Sanches de desqualificar a reivindicação de terras por
parte dos tupinambás, apresentando seu líder, o cacique Babau, como um
criminoso folclórico. Com um golpe de
sensacionalismo, os índios são transformados em candidatos a latifundiários:
Boa parte dos índios atribui às ações de Babau a finalização, em abril,
do relatório da Fundação Nacional do Índio(Funai) que dá aos tupinambás um
território de 47.376 hectares. A área se estende da Serra do Padeiro ao litoral
baiano e inclui centenas de fazendas, hotéis, cemitério, além de quase metade
da Vila de Olivença, uma das primeiras concentrações urbanas do Brasil, em
Ilhéus. Se for homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode
acontecer em alguns meses, a reserva indígena dos tupinambás será 43% maior do
que a cidade de Belo Horizonte.
A
redação de Época não ignora, certamente, que 47.376 hectares
representam
473,76 km², nem tampouco que números maiores impressionam mais. É fácil
imaginar que alguns desavisados,
lendo o trecho destacado, talvez tenham saído pelo mundo afirmando que
um
punhado de tupinambás receberia uma área maior do que Portugal inteiro.
Mas retornemos aos nossos dados irrefutáveis. Francisco Xavier Paes
Barreto, em sua
listagem das aldeias baianas de 1859, faz referência a uma, situada na
comarca
de Ilhéus, denominada justamente ... Olivença:
As
autoridades competentes devem apurar sempre, obviamente, quantos e quem são os
índios, se realmente detêm ou detiveram a posse de todas as áreas
reivindicadas, em que condições os demais ocupantes do solo ali se
instalaram. Todavia, tratar a questão
como mero processo de apropriação indébita é extremamente desonesto. Para
piorar a situação, a grande mídia encontra ressonância em uma verdadeira
multidão de blogueiros conservadores, que elegem como seus inimigos todos os
movimentos populares. Na página
intitulada Blog do Sarrafo, encontrei esta pavorosa combinação de
generalizações absurdas com erros gramaticais primários:
www.osarrafo.com.br/v1/2012/.../indios-verdadeiros-e-falsos-indios/
Índios são aqueles que ainda têm seus
antecedentes tribais, vivem em aldeias, tem costumes indígenas, vivem do
extrativismo, caça, pesca artesanatos. E não falsos índios que moram nas
cidades, usam celulares, câmaras digitais, tem costumes civilizados. Esses não
são índios, são falsos índios. Índios verdadeiros não invadem e destroem
propriedades altamente produtivas, não saquei, não roubam, não mata, não
sequestra funcionários públicos federais, e não mantém reféns. Não usa armas de
grosso calibre privativa das Forças Armadas. Esses não são índios! São bandidos
transvestidos de índios e seu lugar é na cadeia.
Caso fosse um
pouco mais instruído, o dono do blog, Guy Valério, faria um par perfeito com o
conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos, administrador da Bahia em
1844, que não reconhecia a identidade indígena das pessoas que exibissem, em
seus traços fisionômicos, o resultado da mestiçagem biológica. Para ele, as aldeias ao longo do tempo se convertiam
em “povoações de indivíduos de outras castas”:
Felizmente, é
possível achar notícias mais fidedignas na própria Internet. Na Revista de História de 5 de maio de 2010
foi publicado o parecer da antropóloga Sheila
Brasileiro, do Ministério Público, sobre os tupinambás de Olivença:
Eles sabem dizer quando foram expulsos de áreas nas quais não estão
hoje. Sabem, por exemplo, nomear árvores frutíferas que foram plantadas por
seus avôs. Existe um reconhecimento de que aquela terra já foi do grupo”,
garante. Segundo ela, o juiz Pedro Holiday poderia estar agindo
sistematicamente a favor dos interesses dos fazendeiros. Ele não reconhece
qualquer caso que envolva movimentos sociais e vê a propriedade de terra como
algo sagrado; afinal, também tem fazenda no Espírito Santo.
Identificamos
na breve narrativa de Sheila a permanência de velhas práticas. Quando administrava a Bahia, no distante ano
de 1847, Antônio Inácio de Azevedo admitiu, fazendo referência a índios há
muito aldeados, que “suas terras andam usurpadas pelos poderosos do
lugar”.
Sucessor
imediato de Azevedo, João José de Moura Magalhães observou que os índios sob a
tutela da província não recebiam qualquer instrução, dependendo da lavoura de
subsistência e de serviços mal pagos prestados a particulares:
Negligente
nas benesses, o Estado imperial nada devia ao republicano no que se refere à
repressão. João Maurício Wanderley,
depois barão de Cotegipe, faz jus à sua fama de político dos mais reacionários
do período em seu relatório de 1855, no qual mencionou conflitos entre índios e
não-índios nas regiões vizinhas aos rios Pardo e Jequitinhonha e à vila de
Prado. Wanderley apreciava, então, duas possibilidades de futuro para os
indígenas não-integrados: a “domesticação” e a extinção pura e simples:
Consultando
a lista dos aldeamentos de 1879, apresentada por Antônio de Araújo Aragão
Bulcão, vemos que quase trinta localidades ainda mantinham aquele status. Somente nas municipalidades de Porto
Seguro e Caravelas havia seis delas, para desgosto dos que acreditam que os
pataxós são índios falsos:
Outros
relatórios nos comprovam que a população indígena externa aos aldeamentos
também estava longe de ser estatisticamente desprezível. Presidente da Bahia em 1856, Álvaro Tibério
de Moncorvo e Lima deixou registro de que os índios não-aldeados eram capazes
de mobilizar forças consideráveis.
Segundo ele, “300 selvagens”, vindos das “matas do rio do Prado” haviam
tomado as plantações do fazendeiro Manoel Caetano de Castro:
No
ano seguinte, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu promovia negociações para a
criação de mais um aldeamento, para os mesmos índios do rio do Prado, que
definiu enquanto “uma tribo numerosa”:
Um
segundo indício de que os índios baianos conservavam importância demográfica no
conjunto da província é fornecido, em 1866, pelo barão de São Lourenço. Este presidente considerava a catequese uma
política importante para a Bahia, tendo em vista a “necessidade de braços para
a lavoura”. Entretanto, como bom
representante da classe senhorial, se dizia favorável à extinção da maioria dos
aldeamentos, sob o pretexto de que seus patrimônios eram mal administrados:
Estive
no estado da Bahia uma única vez, em 1986, e nunca pisei em um arquivo
baiano. Coletei as informações aqui
expostas em poucos minutos de busca no site da Universidade de Chicago. Calculo, portanto, com que facilidade um
especialista na documentação regional sobre os índios pode destroçar o
“conteúdo” das matérias mal construídas que recheiam as publicações
superficiais destinadas à classe média conservadora. É preciso fazê-lo. Uma
tarefa das mais urgentes para a esquerda brasileira é construir uma rede
nacional de informações, tão ampla e articulada quanto possível, e eficaz no
desmonte da obtusa mídia oligárquica.
Fico aguardando no começo da fila.
2 comentários:
Jader, comentar aqui é muito difícil.
Política não é o meu forte. Venho aqui ficar bem informado.
Obrigado.
Curiosidades, fique a vontade, não se preocupe com comentários, meu objetivo é reproduzir bons textos e são muitos na blogosfera que mal tenho tempo de expor alguns deles.
Um grande abraço
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