quarta-feira, 2 de maio de 2012

Mídia capitalista e direitos indígenas

buscado no História & Politìca


                
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      Aconteceram no Brasil, nas últimas décadas, contínuos avanços no sentido da regularização das terras sob ocupação indígena.  Sob a influência de profissionais das Ciências Humanas e Naturais, que em vários casos conviveram durante muitos anos com os descendentes das populações pré-colombianas do país, uma parcela expressiva da sociedade deixou de ver o índio como um ser estranho, o selvagem por excelência.  Os múltiplos estilos de vida das comunidades indígenas são hoje reconhecidos como válidos e respeitáveis, ao menos pelas pessoas de orientação progressista.  Não cabem mais, no século XXI, as tradicionais políticas de inclusão forçada via trabalho subalterno, expulsão ou extermínio.
            Todavia, toda aquisição de direitos por segmentos historicamente marginalizados tem como contrapartida, no mínimo, um forte movimento midiático de “denúncia”.  Quando obrigadas pela ação governamental, pela pressão dos movimentos sociais, ou por ambas, a fazer concessões de qualquer natureza, as oligarquias se colocam infalivelmente na posição de vítimas.  Para isto, dispõem da quase totalidade dos meios de comunicação privados existentes no país.
            Considerando a vastidão do tema, me restringirei a uma única situação concreta: a disputa por terras entre índios e fazendeiros do sul do estado da Bahia.  Os porta-vozes destes últimos ostentam na imprensa os títulos de propriedade de seus clientes, nunca colocando em debate, é claro, as circunstâncias em que se produziram tais documentos. Mas não se limitam a isto: uma das estratégias da mídia burguesa contra os índios é a contestação da própria identidade indígena.  Neste campo, variam as linhas argumentativas: às vezes apela-se para os critérios de aparência física; em outros momentos, alega-se que os índios adotam costumes civilizados, sendo assim, na verdade, caboclos. 
            Examinemos dois exemplos: a revista Veja, na edição de 5 de maio de 2010, publicou uma extensa matéria tentando desqualificar por completo o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas. veja.abril.com.br/050510/farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml
Em um dos boxes, sob a foto de um motorista de ônibus com cocar, podemos ler o seguinte trecho:

O baiano José Aílson da Silva é negro e professa o candomblé. Seu cocar é de penas de galinha, como os que se usam no Carnaval. Silva se declarou pataxó, mas os pataxós disseram que era mentira. Reapareceu tupinambá, povo antropófago extinto no século XVII. Ele é irmão do também autodeclarado cacique Babau, que vive em uma área que nunca foi habitada pelos tupinambás. Sua "tribo" é composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros.             

            Não temos como averiguar a vida pregressa de José Aílson.  Caso seja realmente mentiroso, está em péssima companhia.  Em 1860, o presidente da Bahia, conselheiro Herculano Ferreira Penna, relacionou os vinte e nove aldeamentos indígenas que existiam na província.  Informando que viviam 5.579 pessoas nestas povoações, Ferreira Penna identificou diversas etnias, entre elas os tupinambás que Veja exterminou no século XVII:
            Como se não bastasse a falta de seriedade no trato com a História, o autor do texto, grosseiramente, quis fazer valer o critério pelo qual só é índio quem guarda perfeita semelhança fenotípica com seus antepassados retratados no início da colonização.  Desta maneira, todo e qualquer cidadão autodeclarado índio poderia ser apontado como impostor, visto não haver notícia de população, em qualquer parte do mundo, que mantenha carga genética idêntica à que possuía há quinhentos anos.  O recurso à imagem do selvagem canibal é simplesmente grotesco.   
            A Época de 27 de novembro de 2009
(revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI105789-15223,00-O+...)
não é mais sutil: em reportagem sobre o mesmo tema, fica óbvia a intenção da articulista Mariana Sanches de desqualificar a reivindicação de terras por parte dos tupinambás, apresentando seu líder, o cacique Babau, como um criminoso folclórico.  Com um golpe de sensacionalismo, os índios são transformados em candidatos a latifundiários:

Boa parte dos índios atribui às ações de Babau a finalização, em abril, do relatório da Fundação Nacional do Índio(Funai) que dá aos tupinambás um território de 47.376 hectares. A área se estende da Serra do Padeiro ao litoral baiano e inclui centenas de fazendas, hotéis, cemitério, além de quase metade da Vila de Olivença, uma das primeiras concentrações urbanas do Brasil, em Ilhéus. Se for homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode acontecer em alguns meses, a reserva indígena dos tupinambás será 43% maior do que a cidade de Belo Horizonte.    

            A redação de Época não ignora, certamente, que 47.376 hectares representam 473,76 km², nem tampouco que números maiores impressionam mais.  É fácil imaginar que alguns desavisados, lendo o trecho destacado, talvez tenham saído pelo mundo afirmando que um punhado de tupinambás receberia uma área maior do que Portugal inteiro.  Mas retornemos aos nossos dados irrefutáveis.  Francisco Xavier Paes Barreto, em sua listagem das aldeias baianas de 1859, faz referência a uma, situada na comarca de Ilhéus, denominada justamente ... Olivença:
            As autoridades competentes devem apurar sempre, obviamente, quantos e quem são os índios, se realmente detêm ou detiveram a posse de todas as áreas reivindicadas, em que condições os demais ocupantes do solo ali se instalaram.  Todavia, tratar a questão como mero processo de apropriação indébita é extremamente desonesto. Para piorar a situação, a grande mídia encontra ressonância em uma verdadeira multidão de blogueiros conservadores, que elegem como seus inimigos todos os movimentos populares.  Na página intitulada Blog do Sarrafo, encontrei esta pavorosa combinação de generalizações absurdas com erros gramaticais primários:

www.osarrafo.com.br/v1/2012/.../indios-verdadeiros-e-falsos-indios/

Índios são aqueles que ainda têm seus antecedentes tribais, vivem em aldeias, tem costumes indígenas, vivem do extrativismo, caça, pesca artesanatos. E não falsos índios que moram nas cidades, usam celulares, câmaras digitais, tem costumes civilizados. Esses não são índios, são falsos índios. Índios verdadeiros não invadem e destroem propriedades altamente produtivas, não saquei, não roubam, não mata, não sequestra funcionários públicos federais, e não mantém reféns. Não usa armas de grosso calibre privativa das Forças Armadas. Esses não são índios! São bandidos transvestidos de índios e seu lugar é na cadeia. 

            Caso fosse um pouco mais instruído, o dono do blog, Guy Valério, faria um par perfeito com o conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos, administrador da Bahia em 1844, que não reconhecia a identidade indígena das pessoas que exibissem, em seus traços fisionômicos, o resultado da mestiçagem biológica.  Para ele, as aldeias ao longo do tempo se convertiam em “povoações de indivíduos de outras castas”:
Felizmente, é possível achar notícias mais fidedignas na própria Internet.  Na Revista de História de 5 de maio de 2010

foi publicado o parecer da antropóloga Sheila Brasileiro, do Ministério Público, sobre os tupinambás de Olivença:

Eles sabem dizer quando foram expulsos de áreas nas quais não estão hoje. Sabem, por exemplo, nomear árvores frutíferas que foram plantadas por seus avôs. Existe um reconhecimento de que aquela terra já foi do grupo”, garante. Segundo ela, o juiz Pedro Holiday poderia estar agindo sistematicamente a favor dos interesses dos fazendeiros. Ele não reconhece qualquer caso que envolva movimentos sociais e vê a propriedade de terra como algo sagrado; afinal, também tem fazenda no Espírito Santo.                      

            Identificamos na breve narrativa de Sheila a permanência de velhas práticas.  Quando administrava a Bahia, no distante ano de 1847, Antônio Inácio de Azevedo admitiu, fazendo referência a índios há muito aldeados, que “suas terras andam usurpadas pelos poderosos do lugar”. 
            Sucessor imediato de Azevedo, João José de Moura Magalhães observou que os índios sob a tutela da província não recebiam qualquer instrução, dependendo da lavoura de subsistência e de serviços mal pagos prestados a particulares:
            Negligente nas benesses, o Estado imperial nada devia ao republicano no que se refere à repressão.  João Maurício Wanderley, depois barão de Cotegipe, faz jus à sua fama de político dos mais reacionários do período em seu relatório de 1855, no qual mencionou conflitos entre índios e não-índios nas regiões vizinhas aos rios Pardo e Jequitinhonha e à vila de Prado. Wanderley apreciava, então, duas possibilidades de futuro para os indígenas não-integrados: a “domesticação” e a extinção pura e simples:
            Consultando a lista dos aldeamentos de 1879, apresentada por Antônio de Araújo Aragão Bulcão, vemos que quase trinta localidades ainda mantinham aquele status.    Somente nas municipalidades de Porto Seguro e Caravelas havia seis delas, para desgosto dos que acreditam que os pataxós são índios falsos: 
            Outros relatórios nos comprovam que a população indígena externa aos aldeamentos também estava longe de ser estatisticamente desprezível.  Presidente da Bahia em 1856, Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima deixou registro de que os índios não-aldeados eram capazes de mobilizar forças consideráveis.  Segundo ele, “300 selvagens”, vindos das “matas do rio do Prado” haviam tomado as plantações do fazendeiro Manoel Caetano de Castro:
            No ano seguinte, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu promovia negociações para a criação de mais um aldeamento, para os mesmos índios do rio do Prado, que definiu enquanto “uma tribo numerosa”:
            Um segundo indício de que os índios baianos conservavam importância demográfica no conjunto da província é fornecido, em 1866, pelo barão de São Lourenço.  Este presidente considerava a catequese uma política importante para a Bahia, tendo em vista a “necessidade de braços para a lavoura”.  Entretanto, como bom representante da classe senhorial, se dizia favorável à extinção da maioria dos aldeamentos, sob o pretexto de que seus patrimônios eram mal administrados:
            Estive no estado da Bahia uma única vez, em 1986, e nunca pisei em um arquivo baiano.  Coletei as informações aqui expostas em poucos minutos de busca no site da Universidade de Chicago.  Calculo, portanto, com que facilidade um especialista na documentação regional sobre os índios pode destroçar o “conteúdo” das matérias mal construídas que recheiam as publicações superficiais destinadas à classe média conservadora.  É preciso fazê-lo.  Uma tarefa das mais urgentes para a esquerda brasileira é construir uma rede nacional de informações, tão ampla e articulada quanto possível, e eficaz no desmonte da obtusa mídia oligárquica.  Fico aguardando no começo da fila.  

2 comentários:

Unknown disse...

Jader, comentar aqui é muito difícil.
Política não é o meu forte. Venho aqui ficar bem informado.
Obrigado.

jader resende disse...

Curiosidades, fique a vontade, não se preocupe com comentários, meu objetivo é reproduzir bons textos e são muitos na blogosfera que mal tenho tempo de expor alguns deles.
Um grande abraço